Saturday, April 28, 2007

Tesouros pelas ruas de São Paulo

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Estadao, 26 de marco/2006

Tesouros pelas ruas de São Paulo
Construções que resistem ao tempo e mostram uma riqueza arquitetônica que nem todos percebem na cidade

Anélio Barreto

São Paulo é fascista em um dos lados do Viaduto do Chá, imperialista no outro e moderna na Praça da República. É surrealista, neogótica, colonial autêntica, art nouveau, art déco e muito mais... São

Paulo tem tesouros despercebidos, ou nem tanto. Obras como a do arquiteto predileto de Benito Mussolini, Marcelo Piacenttini, que, ao contrário do que fazia o duce, enriquecem a paisagem. Falamos do Edifício Conde Matarazzo – em que fica hoje a Prefeitura de São Paulo, no lado esquerdo do Viaduto do Chá para quem se dirige por ele ao Teatro Municipal –, um exemplo da arquitetura fascista. Vivíamos os anos 40 (o projeto é de 1939) e, como não poderia deixar de ser, provocou polêmica. A frase é de Mário de Andrade:

– O mármore é muito bonito, dá até vontade de comer. Mas o prédio é música de pancadaria.

Trata-se do maior edifício em travertino romano (o tipo de mármore) já construído no mundo, como lembra o arquiteto Benedito Lima de Toledo, citando Emma Debenedetti e Anita Salmoni, autoras do livro Arquitetura Italiana em São Paulo.

Já o imperialismo fica por conta do prédio da Light, no canto oposto do viaduto, oficialmente Edifício Alexandre Mackenzie, diretor, na época, da então polêmica The São Paulo Light & Power, empresa canadense que solicitou o projeto ao escritório americano Preston & Curtis. O edifício foi concluído em 1929. A Light era acusada de sufocar concorrentes, como a Companhia Água e Luz, e passou a ser ironicamente chamada de São Paulo Light and Too Much Power (Luz e Muito Poder), depois que a Câmara Municipal concedeu a ela o monopólio dos serviços elétricos. Construído na que já foi chamada de a esquina mais movimentada do Brasil – a da Rua Xavier de Toledo com o Viaduto do Chá –, o prédio abriga hoje um shopping center.

ARQUITETO, E SANTO

No tempo do Brasil Colônia, São Paulo era de taipa de pilão, mas como é difícil encontrar hoje relíquias daquela época! A taipa de pilão pode durar séculos, mas tem um inimigo fatal – a chuva. Igrejas, palácios, a residência do bispo, tudo isso foi desaparecendo com o tempo. Há alguns sobreviventes importantes, como o Mosteiro da Luz, as Igrejas Primeira e Terceira da Ordem de São Francisco e a Igreja de Santo Antônio.

O Mosteiro da Luz, na Avenida Tiradentes, foi fundado e construído por frei Antonio de SantÂ'Anna Galvão, em 1774. Ele foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1943 e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) em 1979. Tem a igreja, o alojamento das freiras e uma horta, em que elas trabalham diariamente. Em uma lápide no chão, em frente ao altar, estão enterrados os restos daquele que o projetou, frei Galvão. Beatificado pelo papa João Paulo II no dia 25 de outubro de 1998, está para ser consagrado o primeiro santo brasileiro. Nosso primeiro santo, portanto, era um arquiteto paulista.

A Igreja Primeira da Ordem de São Francisco e a Igreja Terceira da Ordem de São Francisco, no Largo São Francisco, são outras remanescentes da época. A primeira, construída em 1644, recebeu uma nova fachada em 1884, com componentes de pedra e um altar alemão, doado por alunos e professores da Faculdade de Direito. Mas os altares laterais são os mesmos desde a fundação. A espessura das paredes, em taipa de pilão, tem 1 metro e 50 centímetros, uma característica do colonial autêntico, e os afrescos retratam a história dos padres franciscanos; há três valiosíssimas imagens portuguesas: da Virgem, de São Benedito e de São Francisco. Segundo especialistas, a de São Francisco é a mais bela existente nos conventos franciscanos do País.

A Igreja da Ordem Terceira de São Francisco fica ao lado do que foi o Convento de São Francisco. Construída em taipa de pilão, com paredes de pau-a-pique e tijolos, foi inaugurada em 1787. O convento foi demolido e deu lugar à Faculdade de Direito, em 1827. Na demolição, contam, houve assombro com a resistência da taipa, porque as picaretas, ao golpeá-las, provocavam faíscas.

A Igreja de Santo Antônio, na Praça do Patriarca, foi uma das primeiras de São Paulo e aparece no testamento do bandeirante Afonso Sardinha, em 1592, como a Â"ermida de Santo AntônioÂ", para a qual deixa dois cruzados. Ela foi reconstruída em 1717, em 1747 e ainda em 1899.

O BAIRRO PERFEITO

O local era ótimo: o ponto mais alto da face norte do espigão da Paulista, um dos melhores climas da cidade. Daí a idéia de dois imigrantes anglo-saxões, Martinho Buchard e Victor Nothman, de erguer ali um bairro residencial, mas não um bairro comum. Estávamos no fim do século 19, São Paulo evoluía, melhores condições de higiene eram adotadas e, conforme texto de Valentim de Souza no acervo do arquiteto e urbanista Júlio Abe, o objetivo era construir uma Â"cidade da higieneÂ", que só poderia vir a chamar-se Higienópolis. Um bairro que atraísse mansões, comércio de luxo, livrarias, hotéis...

E nesse bairro nasceu a Vila Penteado, na Rua Maranhão, hoje a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP). Projeto de Carlos Ekman, de 1902, adotava o estilo art nouveau, caracterizado por formas inspiradas na natureza, florais, rompendo com o estilo anterior, o neoclássico. O art nouveau, aqui como na Europa, teve um forte desenvolvimento e desapareceu subitamente, principalmente com o início da guerra de 1914. Mas a Vila Penteado foi encomendada por Antônio Álvares Penteado, nascido em Mogi-Mirim e que se mudou para São Paulo em 1890.

Ele comprou aquele grande terreno, em Higienópolis, e chamou Ekman, o arquiteto sueco, pedindo-lhe que fizesse um projeto que ocupasse todo o espaço, toda a quadra. Foram construídos belos jardins, e, mais tarde, os descendentes de Penteado doaram a propriedade à USP. A conservação, interna e externa, é perfeita: poucos edifícios em São Paulo conservaram tão bem as suas formas originais.

FLORES COMO INSPIRAÇÃO

O mesmo Carlos Ekman viria a construir, logo depois, a Escola de Comércio Álvares Penteado, no Largo São Francisco, conservando o mesmo estilo que, deve-se registrar, é um pouco mais contido do que o art nouveau que floresceu na França.

Como facilitar a tarefa das carruagens e fordinhos, que enfrentavam a difícil ladeira da Avenida São João, e ainda melhorar o trânsito dos bondes que subiam a Rua São Bento e a Rua 15 de Novembro no início do século 20? Solução: uma ligação mais eficiente entre os dois lados do Anhangabaú. Assim surgiu outro exemplo de art nouveau em São Paulo, esse encomendado à Bélgica – o Viaduto Santa Ifigênia, que veio pronto e teve sua instalação executada por dois arquitetos italianos, Giulio Micheli e Giuseppe Chiappori, em 1913. O desenho e o floreado das grades são obra do belga Victor Horta, que Benedito Lima de Toledo cita como um dos maiores expoentes do art nouveau não só da Bélgica, como do mundo.

O primeiro viaduto, no entanto, foi o do Chá, embora não seja o que conhecemos hoje. Idealizado em outubro de 1877, pelo francês Jules Martin, como registra o Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo (DPH), ele deveria ligar a Rua Direita ao Morro do Chá – a chácara do barão de Tatuí e suas plantações de chá. Não foi fácil: os paulistanos – e principalmente o barão – precisavam ser convencidos da necessidade da obra, o que, pode-se dizer, levou 15 anos, tempo em que foi concluída. Em 1888, um mês depois de seu início (e, portanto, 11 depois da proposta), os trabalhos haviam sido interrompidos porque o barão não abandonava sua casa. Foi utilizado um forte argumento: os paulistanos favoráveis ao viaduto muniram-se de picaretas e atacaram uma das paredes do sobrado. O barão mudou-se. E então ele foi erguido, em metal alemão e piso de madeira.

O projeto que conhecemos foi elaborado por Elisiário Bahiana, em 1934, porque o anterior já não comportava a afluência do tráfego. O novo Viaduto do Chá, como diz Benedito Lima de Toledo, deve ser enquadrado no estilo art déco, que costuma ser confundido com o nouveau. A diferença, comenta o arquiteto, é que enquanto a art nouveau se inspira em motivos florais, a art déco utiliza motivos geométricos. Dois outros ótimos exemplos são o Banco de São Paulo, na Praça Antônio Prado, projeto de Álvaro Botelho de 1935 (hoje a Secretaria de Esportes, Lazer e Juventude), o Instituto Biológico, atrás do Detran, de Mário Whately, de 1928, e o Largo da Memória. O largo, em que fica a Ladeira da Memória, foi projetado por Victor Dubugras em 1922, no centenário da Independência, e encampou o monumento mais antigo da cidade, o Obelisco da Memória, de 1814.

O GRANDE GARNIER

A ópera era Hamlet, de Ambroise Thomas, inspirada na obra de Shakespeare. Vinte mil pessoas se acotovelavam na Praça Ramos de Azevedo, no centro da cidade, em 12 de setembro de 1911: ia ser inaugurado o Teatro Municipal de São Paulo. Um projeto dos italianos Cláudio e Domiziano Rossi em 1903, baseado no trabalho do arquiteto Charles Garnier que, aos 35 anos, e entre 171 concorrentes, venceu a disputa para construir a Ã"pera de Paris. Os Rossi fizeram seu trabalho contratados pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo. As características principais do estilo Garnier – copiado depois em todo o mundo – são aquele grande hall de entrada, com espaço para receber toda a platéia nos intervalos, e a escada monumental, escultural.

MODERNIDADE

Era preciso construir um edifício para o Ministério da Educação e Saúde Pública no Rio: estávamos no ano de 1936, o governo central ficava lá e aí... o movimento moderno recebeu seu grande impulso no Brasil. Recorreu-se ao grande Le Corbusier, o arquiteto e urbanista francês, que fez o primeiro esboço. O projeto foi então entregue a Lúcio Costa, Jorge M. Moreira, Carlos Leão, Afonso Reidy, Ernani Vasconcellos e Oscar Niemeyer. Como não poderia deixar de ser, o exemplo frutificou e imediatamente solidificou-se em São Paulo, com Rino Levi, Oswaldo Bratke e Vilanova Artigas.

Quando Le Corbusier estabeleceu os princípios daquilo que chamou funcional na arquitetura moderna, ele falou em estrutura isolada, térreo livre sobre pilotis e cobertura na forma de terraço-jardim, o que foi, para a época, uma revolução. Depois outros arquitetos foram adaptando essas condições ao seu próprio estilo. Um dos principais representantes da arquitetura moderna em São Paulo está na Praça da República: o Edifício Ester, projeto de Álvaro Vital Brasil, em 1936. Obedece aos princípios da funcionalidade e tem, como estabeleceu o mestre, o térreo livre, os apartamentos e escritórios dispostos na forma que Lima de Toledo classifica como multifuncional, com um terraço aproveitável para o lazer, que oferece uma vista ampla para a praça.

Dois outros prédios enquadrados no mesmo conceito são o Edifício Prudência, na Avenida Higienópolis, bem em frente à Rua Martim Francisco, projeto de Rino Levi, em 1948, e o Louveira, do mesmo ano, erguido na Praça Vilaboim por Vilanova Artigas. No Prudência, uma grande inovação para uma São Paulo em que as famílias passeavam em bondes e faziam o footing: Rino Levi propunha um edifício com apartamentos de 450 metros quadrados, duas dependências de empregada, copa-cozinha, lavanderia, banheiro e uma grande área livre, para ser dividida em quartos e salas com divisórias colocadas ao sabor do freguês, e removíveis. Conta-se que apenas um comprador aceitou o projeto original: os outros optaram por paredes sólidas, tradicionais, e recortaram a área livre.

Mas São Paulo é também neogótica e tem dois exemplos maravilhosos dessa arquitetura – a Catedral da Sé e a Santa Casa de Misericórdia. É um tipo de arquitetura que se inspira no gótico da Idade Média, na Europa, nos séculos 12 e 13, e tem um elevado sentido religioso. A catedral na Sé foi um projeto do alemão Maximiliano Hehl; construída aos poucos, ficou pronta em 1954.

– A implantação na praça fez com que a catedral tivesse grande destaque, comenta Lima de Toledo. – Vale a pena visitar o pavimento inferior, que tem uma estrutura muito bonita, com tijolos à vista. É uma igreja monumental.

O outro exemplo neogótico de destaque, a Santa Casa, na Rua Santa Isabel, em Santa Cecília, foi inaugurada em 1884 e tem um atrativo imperdível: a capela, que é um anexo do prédio principal. Construída por dois arquitetos italianos, Luigi Pucci e Julio Michelli, ficou pronta em 1895 e acaba de ser completamente restaurada.

ARQUITETURA SEM ARQUITETO

Fala Benedito Lima de Toledo:

– São Paulo recebeu um grande contingente de arquitetos italianos – os capomastri – que fizeram uma arquitetura muito pitoresca e muito característica: a Rua Florêncio de Abreu conta com diversas dessas manifestações, assim como a Santa Ifigênia etc. Eram pessoas de muita competência para executar os relevos, os componentes da própria casa, fazendo uma interpretação pessoal, não acadêmica, mas que em alguns casos, como a Casa da Bóia, de 1898, na Florêncio de Abreu, ficaram muito expressivos. A casa até ganhou uma certa fama em virtude dessa arquitetura. Tem uma história de que, quando tinham um terreno na Bela Vista – os terrenos lá eram muito estreitos, com 5 metros de frente por 50 de fundo –, eles iam lá e riscavam a casa diretamente no chão, com a ponta do guarda-chuva. Então é um exemplo de arquitetura sem arquiteto. Isso faz parte do folclore, mas acho que não está muito longe disso. Eles usavam manifestações de diversas épocas, o que os aproximava muito do ecletismo.

O ecletismo – outro tipo de arquitetura da cidade – tem como característica a incorporação de diversos estilos ao longo do tempo: renascentista, maneirista, barroco ou neoclássico, formando uma composição. Um belo exemplo é o prédio chamado de Rádio Record, onde funcionava a Casa Bevilacqua, na esquina das Ruas Direita e Quintino Bocaiúva. As esculturas, na fachada, ilustram bem essa incorporação de estilos.

SURREAL

Lima de Toledo lembra agora de um tesouro esquecido do centro de São Paulo, a Casa Surrealista, ou Vila Itororó, como é conhecida, na Rua Martiniano de Carvalho, construída em 1922:

– A Casa Surrealista tem esse nome por diversas razões. O proprietário chamava-se Francisco de Castro, era comerciante de tecidos, e ali onde hoje é a 23 de Maio era um barranco, descuidado. Ele então começou a fazer o seu palacete lá usando material de demolição, uma parte dele do Teatro São José, que ficava numa das cabeceiras do Viaduto do Chá. Quando o teatro foi demolido, ele comprou partes e fez uma grande colagem com esse material, mas era tudo fruto da imaginação dele. A Vila Itororó tem umas coisas fantásticas, como por exemplo a ligação com a Rua Martiniano de Carvalho, que é feita por umas passarelas muito delicadas, com estrutura muito bem estudada, e dentro tem uma sala, que antigamente era ocupada por um dentista. Francisco mandou pintar nela o quadro do Pedro Américo. Ele tinha uma nascente no terreno, muito interessante, porque inventou umas histórias sobre ela, mas o importante é que tinha água própria, e tinha no térreo um clube de ginástica, um clube de futebol e, além disso, uma piscina, uma piscina coberta – e então essa foi a primeira casa em São Paulo a ter uma piscina. Agora, cada vez que a gente vai lá, descobre um aspecto incomum. A vila é um conjunto de casas, se não me engano são 12, que ele foi construindo, e que alugava, e dizem alguns que, quando ele se descartava de uma mulher, compensava dando uma casinha para ela lá.

São Paulo tem tesouros despercebidos. É fascista, imperialista, surrealista, neogótica, colonial autêntica, art nouveau, art déco e muito mais... Olhe em volta.

[PONTO] Consultor:

Benedito Lima de Toledo>

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